Bento XVI
“Agora, porém, temos de voltar
para aquele que convocou o Concílio Vaticano II e que o inaugurou: o
Bem-Aventurado João XXIII. No Discurso de Abertura, ele apresentou a finalidade
principal do Concílio usando estas palavras: ‘O que mais importa ao Concílio
Ecumênico é o seguinte: que o depósito sagrado da doutrina cristã seja guardado
e ensinado de forma mais eficaz. (...) Por isso, o objetivo principal deste
Concílio não é a discussão sobre este ou aquele tema doutrinal... Para isso, não
havia necessidade de um Concílio... É necessário que esta doutrina certa e
imutável, que deve ser fielmente respeitada, seja aprofundada e apresentada de
forma a responder às exigências do nosso tempo’ (AAS 54 [1962], 790791-792).”
“À luz destas palavras,
entende-se aquilo que eu mesmo pude então experimentar: durante o Concílio
havia uma tensão emocionante, em relação à tarefa comum de fazer resplandecer a
verdade e a beleza da fé no hoje do nosso tempo, sem sacrificá-la frente às
exigências do presente, nem mantê-la presa ao passado: na fé ecoa o eterno
presente de Deus, que transcende o tempo, mas que só pode ser acolhida no nosso
hoje, que não torna a repetir-se. Por isso, julgo que a coisa mais importante,
especialmente numa ocasião tão significativa como a presente, seja reavivar em
toda a Igreja aquela tensão positiva, aquele desejo ardente de anunciar
novamente Cristo ao homem contemporâneo. Mas para que este impulso interior à
nova evangelização não seja só um ideal e não peque de confusão, é necessário
que ele se apoie sobre uma base concreta e precisa, e esta base são os
documentos do Concílio Vaticano II, nos quais este impulso encontrou a sua
expressão. É por isso que repetidamente tenho insistido na necessidade de
retornar, por assim dizer, à ‘letra’ do Concílio - ou seja, aos seus textos -
para também encontrar o seu verdadeiro espírito; e tenho repetido que neles se
encontra a verdadeira herança do Concílio Vaticano II. A referência aos
documentos protege dos extremos tanto de nostalgias anacrônicas como de avanços
excessivos, permitindo captar a novidade na continuidade. O Concílio não
excogitou nada de novo em matéria de fé, nem quis substituir aquilo que existia
antes. Pelo contrário, preocupou-se em fazer com que a mesma fé continue a ser
vivida no presente, continue a ser uma fé viva em um mundo em mudança.”
“Se nos colocarmos em sintonia
com a orientação autêntica que o Bem-Aventurado João XXIII queria dar ao
Vaticano II, poderemos atualizá-la ao longo deste Ano da Fé, no único caminho
da Igreja que quer aprofundar continuamente a ‘bagagem’ da fé que Cristo lhe
confiou. Os Padres conciliares queriam voltar a apresentar a fé de uma forma
eficaz, e se quiseram abrir-se com confiança ao diálogo com o mundo moderno foi
justamente porque eles estavam seguros da sua fé, da rocha firme em que se
apoiavam. Contudo, nos anos seguintes, muitos acolheram acriticamente a
mentalidade dominante, questionando os próprios fundamentos do depositum fidei
a qual infelizmente já não consideravam como própria diante daquilo que tinham
por verdade.”
“Se a Igreja hoje propõe um
novo Ano da Fé e a nova evangelização, não é para prestar honras a uma
efeméride, mas porque é necessário, ainda mais do que há 50 anos! (...) Nos
últimos decênios tem-se visto o avanço de uma ‘desertificação’ espiritual. Qual
fosse o valor de uma vida, de um mundo sem Deus, no tempo do Concílio já se
podia perceber a partir de algumas páginas trágicas da história, mas agora,
infelizmente, o vemos ao nosso redor todos os dias. É o vazio que se espalhou.
No entanto, é precisamente a partir da experiência deste deserto, deste vazio,
que podemos redescobrir a alegria de crer, a sua importância vital para nós
homens e mulheres. No deserto é possível redescobrir o valor daquilo que é
essencial para a vida; assim sendo, no mundo de hoje, há inúmeros sinais da
sede de Deus, do sentido último da vida, ainda que muitas vezes expressos
implícita ou negativamente. E no deserto existe, sobretudo, necessidade de
pessoas de fé que, com suas próprias vidas, indiquem o caminho para a Terra
Prometida, mantendo assim viva a esperança. A fé vivida abre o coração à Graça
de Deus que liberta do pessimismo. Hoje, mais do que nunca, evangelizar
significa testemunhar uma vida nova, transformada por Deus, indicando assim o
caminho. A primeira Leitura falava da sabedoria do viajante (cf. Eclo 34,
9-13): a viagem é uma metáfora da vida, e o viajante sábio é aquele que
aprendeu a arte de viver e pode compartilhá-la com os irmãos - como acontece
com os peregrinos no Caminho de Santiago, ou em outros caminhos de peregrinação
que, não por acaso, estão novamente em voga nestes últimos anos. Por que tantas
pessoas hoje sentem a necessidade de fazer esses caminhos? Não seria porque
neles encontraram, ou pelo menos intuíram o significado do nosso estar no
mundo? Eis aqui o modo como podemos representar este ano da Fé: uma
peregrinação nos desertos do mundo contemporâneo, em que se deve levar apenas o
que é essencial: nem cajado, nem sacola, nem pão, nem dinheiro, nem duas túnicas
- como o Senhor exorta aos Apóstolos ao enviá-los em missão (cf. Lc 9, 3), mas
sim o Evangelho e a fé da Igreja, dos quais os documentos do Concílio Vaticano
II são uma expressão luminosa, assim como é o Catecismo da Igreja Católica,
publicado há 20 anos.”